28 de jun. de 2016

Sobre a Raiva e outros instintos



Saí, bati a porta atrás de mim e saí.

No bolso só uns trocados, meu caderno, um maço de cigarros e a chave. Precisava andar, deixar passar essa cegueira, essa fumaça que me turva os sentidos, olhar pro nada, gastar energia, andar.
Sem rumo, sem horizonte, andar, andar, um cigarro inteiro se foi, alguns quilômetros, o suor já minava na testa, outro cigarro, o véu insano começa a sair da vista.
Olhei em volta, a praça, procurei uma sombra pra sentar, sentir esse vento de chuva que chegaria logo, as nuvens negras agora pareciam sair da minha cabeça e povoar o céu, vento forte levanta poeira, a terra castanha como seus olhos...

Um dia que começou tranqüilo, um domingo qualquer, fazia pouco tínhamos nos conhecido, fazia pouco dividíamos a cama, a casa, um pouco da vida.
Era pra ter sido só uma transa, era pra ter sido só um caso, era pra ter sido uma louca aventura, virou uma coisa meio assim freelancer, sem acordo, sem conversar sobre, só um tesão louco, uma amizade sólida, a necessidade, e tudo foi se desenrolando suave, como aquela manhã de domingo que você saiu prevendo que voltaria só no dia seguinte.

À tarde, voltei do almoço tranqüila, o moço, outro, com quem ainda tinha um casinho, avisa que vem visitar, prognósticos de uma noite casualmente agradável. Conversas, cervejas, alguém tentando abrir a porta por fora, ouço barulho, “droga! O Carlos voltou antes”, pensei.

Carlos desceu daquele ônibus como quem chega do inferno, aquele dia precisava acabar, queria chegar, dar um cheiro nela, relaxar, esquecer tudo aquilo.
Andava rápido, os metros pareciam maiores, a cabeça zunindo como num frisson de loló, queria chegar, subiu pelo elevador impaciente, a chave travada, “ela pelo menos está em casa”, pensou, não queria ficar sozinho.
... 
Acho que ali ele percebeu o quão sem rumo estava, a porta trancada por dentro, aberta com um sorriso que o bloqueava na entrada.
_ Tenho visita... – o sorriso amarelo foi morrendo no encontro com seus olhos

O sossego temporário, o porto ainda que pouco seguro, de novo o expulsava.
Tinha que sair dali, correr, sem rumo nem chão, apoio ou perdão, seus medos, todos, o perseguindo e ele fraco demais pra resistir, sem saber aonde ir, queria sumir.

_ você não faz ideia do que eu passei hoje, tudo o que eu tive que ouvir... – a fala que sumia se escondendo na sombra que tomava seus olhos, eu via decepção e desamparo ali estampados.


...Foi esse olhar, um flash de segundos, e tudo o que estava ao meu redor sumiu, o cara gostoso me esperando no sofá sumiu junto com a paixãozinha que senti por ele um dia, um flash de segundos, um reflexo no seu olho, ali do outro lado da porta, claramente o lado errado, segundos seculares me evidenciando o óbvio, eu já desconfiava sem querer admitir, mas agora não tinha mais jeito de negar, um flash de segundos, e eu descobri que te amava.
A percepção me atingiu como um soco no estômago, logo eu, a Malu, tão segura, tão madura, tão consciente, de repente sugada num torvelinho emocional, precisando ser racional, como quem saca um drama shakespeariano no contexto de um folhetim barato...


Muito com que lidar, pouco tempo, tentando manter a calma, você saindo desarvorado, corredor, elevador, saguão, e eu atrás tentando em vão te acalmar.

_Espera, ele vai embora, não tinha como adivinhar que você vinha hoje...
_Preciso andar, me deixa...

Empurrou meu braço e saiu portão afora e eu, eu fiquei presa, de meias, do lado de fora do prédio.
A vida, ela sempre dá um jeito de tirar uma com a minha cara.

...Preciso pensar claro, despachei o bofe, vou atrás de você, meu coração apertado de perceber seu olhar, não queria ver você se sentir assim, nunca, um medo insano que me gela a espinha, me aprisionando por instantes na espiral da posse, da perda, um momento de quase pânico, a insegurança do terreno insólito, tinha muito que processar enquanto andava pelas ruas escuras à sua procura, meu mundo girando, calma, preciso ficar calma, preciso ficar calma...


_Senta aqui no sofá, vou te fazer um chá.

_Vou embora amanhã – falou num murmúrio me observando pelas beiradas dos olhos.

_tsc, não precisa ser assim, você sabe, te convidei pra ficar aqui e pra ficar o tempo que precisar. Calma, não é hora de decidir isso, toma o chá, é de frutas vermelhas, vai te acalmar.

_Eu te atrapalho aqui, a casa é sua pra receber quem quiser, vou procurar outro lugar.

_Carlos, tudo isso que você tá falando é verdade, mas antes de tudo eu te respeito, te respeito muito mesmo, e estou bastante chateada com essa confusão toda...

As lágrimas caiam discretas do canto dos seus olhos que mal me olhavam, o nó que me apertava a garganta, quero te tocar, não consigo, eu queria te entender melhor, você é uma muralha intransponível, eu costurava restos, fiapos, percebendo aos poucos em você receios que vejo também em mim.

_Relaxa, solta o que te machuca, não precisa falar, só deixa sair – compartilhávamos um choro sentido, minha mão no seu peito sentindo sua angústia, o abraço em conchinha tentando ser um alento.
_Eu sinto muita raiva... – foi sua ultima frase antes do sono, saiu num sussurro fino, cheio de dor

...

Gotas grossas anunciando a tempestade me lembram de correr para um abrigo, saio do devaneio pensando justamente nisso: a raiva.

A explosão, a caminhada furiosa, a mente turva, confusão, uma lembrança perdida no tempo.

Corro, me abrigo sob a marquise do teatro ainda fechado, as arvores densas na praça, a chuva forte fustigando seus caules cascudos, a cortina densa de água que corre na enxurrada levando tudo, penso nos mitos primordiais, lendas antigas, parábolas do cotidiano, imagens pictóricas representando instintos, busco associações, os deuses que dançam no fogo, fadas e faunos selvagens se regalando no mundo dos prazeres, prazeres que assustam incautos, o sentimento básico, que domina e explode a razão, a imagem mística travestida, seja de medo, dor, paixão, tesão, amor, ou raiva, escurecendo a visão como forma de proteção como a translucides agradável de óculos escuros em dias de sol.

Queria estar de óculos escuros agora, mas não cabem óculos escuros sob a chuva torrencial, assim como não cabia nossa brincadeira de casinha num enredo com personagens tão complexos.
Fui navegar no mar pirata, aquele de roteiro simples, escolhi mergulhar, imergir, gostei do mar profundo e revolto, gostei de passar pela turbulência e aprender a nadar até a praia, cheguei pra pisar na terra firme.

Enxergar sem máscara, sem véu, ou melhor, olhar sob o véu figurado pra ver a magia do instinto em sua ação crua.

É curioso perceber me perdendo nesses pensamentos aleatórios, um acesso de raiva que me levou pro passado, a tempestade que me trouxe de volta e me largou aqui, sentada sob a marquise, escrevendo memórias e divagações num caderninho surrado, esperando a chuva passar.